Uma pesquisa mostra que mais de 60% das crianças brasileiras com 7 a 12 anos se expõem em serviços como Facebook e WhatsApp. Episódios como o ocorrido no programa "MasterChef" mostram por que nenhuma delas poderia estar ali
BRUNO FERRARI, IGOR UTSUMI E ANA HELENA RODRIGUES
27/10/2015 - 20h01 - Atualizado 27/10/2015 20h14
CURIOSO - Kauã, de 8 anos, entrou no Google para buscar a palavra “sexo”. Os pais o observavam, à distância, e falaram com ele (Foto: Letícia Moreira/EPOCA) |
As duas edições do programa MasterChef, exibido pela Band desde 2014, foram um sucesso nas redes sociais. Serviram de bom exemplo do fenômeno conhecido como segunda tela – quando o espectador assiste à TV enquanto comenta na internet sobre o que está assistindo. Os participantes e jurados viraram celebridades instantâneas na rede. Isso criou grande expectativa para o MasterChef Júnior, com participantes entre 9 e 13 anos. O primeiro episódio foi ao ar na semana passada. Mas a segunda tela, desta vez, tornou-se um cenário de horror. Amparados na falsa ideia de que a internet é uma terra sem lei, usuários poluíram o Twitter com mensagens de incentivo à agressão sexual e à homofobia. Garotos de 10 anos foram chamados de “bichas” e “viados”. Os comentários mais chocantes trataram da participante Valentina Schulz, de 12 anos. “A culpa da pedofilia é dessa mulecada (sic) gostosa”, escreveu @kemper_guedes. “Sobre essa Valentina, se tiver consenso é pedofilia?”, escreveu @andersoberano. O nome da garota foi parar nos assuntos mais comentados do Twitter. “Estávamos preparados para o assédio, mas não imaginávamos encontrar tarados”, disse o publicitário Alexandre Schulz, pai de Valentina, ao portal iG. “Teve gente que pediu que ela mandasse foto nua.”
Os culpados nesse tipo de ataque, é óbvio, são os assediadores e agressores, e não as vítimas e suas famílias (leia a coluna de Ruth de Aquino). O problema é que a maioria dos pais parece subestimar os riscos. Engana-se quem pensa que o problema com Valentina ocorreu apenas por ela estar em evidência na televisão. O assédio a menores em redes sociais e aplicativos ocorre em tempo integral. Uma pesquisa obtida com exclusividade por ÉPOCA mostra que ainda são poucos os pais e responsáveis por crianças no Brasil que impõem regras de uso na internet para seus filhos. O estudo, coordenado pela consultoria paulistana Officina Sophia, ouviu 1.000 crianças, entre 7 e 12 anos, que usam a internet, em diferentes capitais brasileiras, sempre acompanhadas de um maior de idade. Do total, 65% disseram não ter regras ou tempo determinado para acessar a internet.
Faltam dados precisos sobre assédio digital – os responsáveis não costumam denunciar, por medo de expor os filhos ou prolongar o episódio. Mas evidências não faltam. A consultora de mídias sociais Liliane Ferrari já trabalhou para marcas de roupas infantis. Mãe de uma menina de 9 anos, ela ficou chocada ao analisar os dados de tráfego nos sites dessas marcas. “Durante a madrugada, crescia o acesso às páginas que mostravam crianças em roupa de banho e pijama”, diz. “As pessoas chegavam a essas páginas buscando no Google por expressões impronunciáveis.” No início de outubro, a revista inglesa The Economist publicou um levantamento com o site de pornografia PornHub, mostrando qual era a palavra mais buscada por usuários de diferentes países. No Brasil, a expressão mais popular foi “novinha”, originária do funk e usada para identificar garotas adolescentes ou mulheres com características muito juvenis.
A advogada e pedagoga Cristina Sleiman, atende regularmente em seu escritório pais cujos filhos foram assediados em redes sociais. Ela explica que uma tática comum dos criminosos é descobrir, pelo próprio serviço, o nome dos pais do menor. Depois, exigem que a vítima envie fotos sem roupa, sob ameaça de matar seus pais. “Imagine isso sendo dito a uma criança de 8 anos”, diz Cristina. “Elas costumam mentir para os pais durante um tempo, com medo de que algo aconteça. Quando contam, o estrago já está feito.” Em julho, o site de ÉPOCA contou a história da carioca Eduarda*, que permitia que sua filha Cecília*, de 10 anos, mantivesse uma conta no Facebook “por pressão dos amiguinhos”. Um dia, a menina contou, assustada, que havia recebido uma mensagem de um estranho. Ao acessar o perfil da criança, a mãe encontrou 92 pedidos de amizades de desconhecidos. Decidiu continuar a conversa com o estranho, que a assediou mesmo pensando ser uma criança de 10 anos. A mãe apagou a conta da filha.
Para evitar casos assim, a maior parte das redes sociais estabelece uma idade mínima para o usuário. Está nas regras do Facebook: “Você não deve usar o Facebook se for menor de 13 anos”. O mesmo vale para Instagram, Pinterest, Snapchat e Twitter. No YouTube, crianças podem assistir, mas apenas adolescentes a partir de 13 anos podem criar um canal. O WhatsApp define limite maior, de 16 anos. ÉPOCA conversou com dezenas de responsáveis por crianças nas últimas semanas. A maioria desconhece os limites de idade e disse permitir que seus filhos acessem algumas redes sociais e aplicativos de mensagens. É um fenômeno global. No Brasil, segundo o estudo da Officina Sophia, ao menos 62% das crianças entre 7 e 12 anos usuárias de internet acessam uma rede social. Espontaneamente, mencionaram Facebook, WhatsApp, YouTube, Twitter e Snapchat. Nenhuma delas poderia usar nenhum desses serviços.
VERGONHA - Valentina (no centro) em prova do programa MasterChef Júnior. Usuários do Twitter assediaram a garota de 12 anos (Foto: divulgação)
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Diversas razões levam os responsáveis a deixar menores de 13 anos criar contas em redes sociais. O mais comum é alegar que os colegas de escola fazem isso. Em Baldim, Minas Gerais, a cabeleireira Helena* observa suas filhas Maria*, de 10 anos, e Ana*, de 6, brincando em seus perfis no Facebook. Segundo Helena, a filha mais velha costuma entrar na rede social para curtir páginas de filmes. Ela também troca mensagens por WhatsApp com os colegas de escola. “A caçula não sabe ler direito, mas coloco algumas fotos dela com a irmã”, diz Helena. Ela receia que as filhas encontrem conteúdo impróprio ou sofram algum tipo de assédio e acredita tomar todas as medidas para protegê-las. “Por mim, ninguém tinha nada, mas abrimos mão por todo mundo ter conta no Facebook e celular com WhatsApp. A gente se sente pressionada para evoluir também”, afirma.
Outros pais acham que os filhos estão seguros por usar sistemas de controle parental e conversar sobre o tema. A analista de logística Eliana Silva, mãe de Kauã, de 8 anos, descobriu que não é bem assim. O garoto usa o computador para jogar e assistir a vídeos. Desde cedo, Maurício, o pai, que trabalha com tecnologia da informação, orienta o filho sobre o que ele pode e não pode fazer on-line. Há poucos meses, por um desencontro nas agendas de trabalho dos pais, Kauã precisou ficar sozinho em casa por um breve período. O menino achou que poderia navegar incógnito pela internet, mas o pai estava usando um software que espelha a tela do PC de casa no computador do trabalho. “Foi só o pai sair de casa que ele abriu o Google e digitou a palavra ‘sexo’”, diz Eliana. O pai telefonou e perguntou ao filho o que ele estava fazendo. A criança respondeu genericamente que estava brincando. Mesmo com a insistência do pai, continuou a negar que estivesse no computador. “Eles ficaram no telefone até a hora em que eu cheguei”, afirma Eliana. “Quando o pai voltou, conversamos sobre a idade adequada para ter interesse por esse tipo de assunto e ele entendeu que tínhamos acesso a tudo o que ele fazia no computador.”
O caso revela muito sobre a mente infantil. A curiosidade é natural e saudável, e deve ser estimulada. Mas os pais têm de acompanhar as ações dos filhos e suas descobertas. Isso vale na rua e também nos ambientes virtuais. “É importante que as crianças aprendam o conceito de público e privado”, diz Patrícia Cintra, diretora pedagógica da Escola Eduque, de São Paulo. “Uma vez que elas colocam uma foto ou um conteúdo qualquer em seus perfis, pode ser impossível voltar atrás.” A escola tem alunos de até 11 anos e não permite o uso de smartphones durante o período de aula. Incentiva o acesso a tablets, mas com aplicativos e rede próprios. “Mesmo quando a família tem um perfil coletivo, deixamos claro para os pais essa relação entre o público e o privado.”
Frequentemente, os próprios responsáveis expõem demais os filhos nas redes sociais. Não veem problema em publicar imagens de crianças usando pijamas, tomando banho ou usando roupa de praia. “Os pais estão deslumbrados com a tecnologia, andam para lá e para cá com o pescoço abaixado, olhando o smartphone”, diz Naira Maneo, diretora da Officina Sophia, responsável pela pesquisa. A falta de discernimento chega a extremos. Em julho, um tribunal de Évora, em Portugal, proibiu os pais de uma menina de publicar fotos da filha no Facebook. “Tão natural quanto garantir a saúde e a educação dos filhos, é o respeito pelo direito à imagem e à reserva da vida privada”, afirmou o juiz.
CUIDADO - Karina e Clara, na cama. A menina, de 9 anos, não pode usar redes sociais e tem horário restrito para usar a internet (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
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O problema, muitas vezes, não nasce em casa, e sim na escola. A empresária paulistana Karina Gentile, mãe de Clara, de 9 anos, ficou surpresa ao descobrir que uma professora de sua filha havia criado um grupo de WhatsApp para se comunicar com seus alunos. Aplicativo, vale lembrar, permitido apenas a maiores de 16 anos. Na primeira noite, um garoto da sala enviou 77 fotos dele para o grupo e foi criticado pelos colegas. A empresária define para a filha regras restritivas de acesso à tecnologia e a deixou fora do grupo criado pela professora. A menina acessa a internet, pelo tablet, uma hora por dia, três vezes por semana. Redes sociais são proibidas. Clara só acessa o YouTube, e supervisionada pelos pais. “Podem me chamar de radical. Mas acho que para tudo tem seu tempo – para as bonecas, o livro, o tablet”, diz a mãe. A proibição não é apenas por segurança. Leva em conta o desenvolvimento de habilidades da menina. Karina teme os exageros. “Hoje, as crianças ganham num só aniversário o tanto de brinquedos que os pais ganharam na infância inteira”, afirma.
Não se questionam os benefícios oferecidos pela tecnologia. Mas seus eventuais efeitos colaterais exigem avaliação. O assédio virtual, como no caso do programa MasterChef Júnior, é só um dos problemas que as redes sociais podem acarretar, com o crescente uso por crianças com menos de 13 anos. Elas são também expostas a cyberbullying e podem ser usadas por sequestradores e ladrões na busca de informações pessoais sobre a família. Há alguns sinais alentadores. Uma pesquisa da empresa de segurança digital Kaspersky mostrou que a preocupação dos pais com o acesso dos filhos às redes sociais vem aumentando. Em 2013, somente 22% dos responsáveis se diziam receosos de seus filhos acessarem esses serviços. Em 2015, essa parcela aumentou para 54%.
A estratégia dos pais não deveria ser tratar a internet e os aplicativos como vilões. É preciso tratar as redes sociais como qualquer área ou atividade de risco existente no mundo físico. “Minha filha não pode mexer no fogão, sair de casa sozinha e usar o Facebook”, diz a consultora de redes sociais Liliane. Alguns pais receiam que os filhos possam se tornar inocentes e atrasados, diante de uma geração de crianças conectadas – como se não acessar redes sociais pudesse criar uma espécie de bolha isolante. Os conectados a esses serviços não se tornam mais proficientes em nenhuma habilidade fundamental. Eles são meras ferramentas de comunicação. Quando chegar à idade em que pode interagir sozinho com estranhos e com o mundo, o adolescente saberá decidir como usá-los.
*Os nomes de alguns pais e filhos na reportagem foram trocados, a fim de proteger a identidade das famílias
Fonte: http://epoca.globo.com/vida/experiencias-digitais/noticia/2015/10/rede-social-nao-e-lugar-para-crianca.html
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