terça-feira, 9 de agosto de 2016

Podemos ser melhores



Tenho sorte. É uma existência abençoada escolher uma vida criativa e ter a oportunidade de fazer um trabalho recompensador que às vezes é significativo, que compensa o preço dos desafios que dizem respeito à vida pública.

Às vezes isso significa aceitar humilhações; outras, entender quando o silêncio perpetua um problema maior.

Em outubro de 2014, um tablóide informou que eu provavelmente tinha feito uma cirurgia para alterar meus olhos.

Não importava; apenas mais uma história na pilha de lixo gerada diariamente pelos tabloides e alimentada pelas manchetes sensacionalistas e pelas pessoas que praticam a crueldade de forma covarde em seus púlpitos na internet.

No interesse do jornalismo de tabloide, que lucra inventando e injetando caos e escândalo na vida das pessoas e depois as humilhando, a verdade é reduzida a apenas um lado do argumento fictício. 

Não consigo imaginar que exista dignidade em se explicar para quem vive do comércio de escândalos artificiais, ou em buscar a aprovação daqueles que tiram sarro dos outros por esporte. É entretenimento bobo, é sem importância, e não vejo por que comentar.

No entanto, em nossa cultura atual de transparência não-solicitada, de roupa suja lavada na TV e de pessoas vendendo seus detalhes mais íntimos em troca de atenção e notoriedade, parece que escolher a privacidade te torna uma pessoa suspeita. Hipócrita. 

Uma mentirosa que tem de esconder algum comportamento nefasto. "Ela nega", implica uma tentativa de acobertar a "verdade exposta" pelos tabloide.

E se as histórias inventadas, julgamentos e equívocos dos tabloides ficassem confinados à categoria de entretenimento de baixa qualidade e fossem substituídos na grande mídia por conversas muito mais importantes e necessárias?

Hoje, quando histórias inventadas de internet se tornam a verdade em instantes, escolher a dignidade do silêncio -- em vez de se envolver com o comércio da ficção cruel - te deixa vulnerável não só à ridicularização de sempre, mas também a ter sua narrativa sequestrada por aqueles que lucram com escândalos inventados.

Não estou escrevendo hoje porque fui vítima de bullying público ou porque o valor do meu trabalho tenha sido questionado por um crítico cujo ideal físico de representação de um personagem fictício já tem 16 anos - um ideal do qual ele se sente dono e o qual não atinjo mais hoje. 

Não estou escrevendo em protesto à sugestão repulsiva de que o valor e as contribuições de uma pessoa sejam diminuídas se ela se dobrar às pressões sociais relativas à aparência, e que ela tenha de justificar suas escolhas pessoas no tribunal da opinião pública. 

Não estou escrevendo porque acho que é um direito individual tomar decisões sobre seu próprio corpo, sem julgamentos e por qualquer razão.

Estou escrevendo porque, para ser justa comigo mesma, tenho de reivindicar as verdades sobre minha vida e porque é muito preocupante ver a transmutação do lixo dos tabloides em verdade. 

A matéria sobre a "cirurgia nos olhos" não teve importância, mas se tornou catalisadora da minha inclusão em matérias subsequentes - e legítimas -- sobre autoaceitação e mulheres que sucumbem à pressão social por causa de sua aparência e por causa do envelhecimento. 

Na minha opinião, o fato de especulações de tabloides se tornarem assunto dos veículos de notícia mainstream tem importância.

Não que seja da conta de ninguém, mas não tomei a decisão de alterar meu rosto e fazer cirurgia nos meus olhos. 

Este fato não importa para ninguém, mas que a possibilidade tenha sido discutida por jornalistas respeitados e tenha se tornado uma conversa pública é uma ilustração desconcertante da confusão entre notícia e entretenimento e a fixação da sociedade nos atributos físicos.

Não é segredo que o valor da mulher é medido historicamente por sua aparência. Embora tenhamos evoluído para reconhecer a participação feminina como medida do sucesso da sociedade, e apesar de darmos de barato que as mulheres são símbolos em várias posições de destaque e influência, nossas contribuições ainda são diminuídas com o uso de dois pesos e duas medidas. 

E isso é perpetuado pela conversa negativa que entra na nossa consciência todos os dias na forma de entretenimento maldoso.

Magra demais, gorda demais, aparentando a idade, melhor morena, celulite nas coxas, calvície, barriguinha ou gravidez? Sapato feio, pés feios, sorriso feio, mãos feias, vestido feio, risada feia; material de manchete que enfatiza variáveis que determinam o valor de uma pessoa e serve de parâmetro rígido dentro dos quais todos temos de existir a fim de sermos considerados socialmente aceitáveis e dignos de valor no campo profissional - além de livres da ridicularização. 

A mensagem resultante é problemática para as gerações mais jovens e suas mentes impressionáveis. Sem dúvida, isso vai precipitar inúmeras questões de conformidade, preconceito, igualdade, autoaceitação, bullying e saúde.
Não é segredo que o valor da mulher é medido historicamente por sua aparência.
A repetição constante e onipresente de matérias de tabloide, julgamentos maldosos e informações falsas não é inofensiva.

Ela toma cada vez mais tempo dos incontáveis eventos significativos e sem precedentes que afetam nosso mundo. Ela satura nossa cultura, rebaixa o nível do discurso social e político, torna a crueldade uma norma cultural e inunda as pessoas com informações sem importância.

E se as histórias inventadas, julgamentos e equívocos dos tabloides ficassem confinados à categoria de entretenimento de baixa qualidade e fossem substituídos na grande mídia por conversas muito mais importantes e necessárias? 

E se tomássemos mais cuidado sobre as escolhas que fazemos para nós mesmos, escolhendo melhor como canalizar nossas energias e em que histórias acreditar; lembrar que informação - verdadeira ou fictícia - é frequentemente transformada em produto, e seu conteúdo e como o usamos têm importantes consequências pessoais, sociais e públicas?

Talvez possamos falar mais sobre esse nosso apetite coletivo por ver pessoas diminuídas e humilhadas com base em sua aparência e caráter, e o impacto disso em nossas gerações mais jovens e na luta por igualdade. 

Falar mais sobre a vulnerabilidade da imprensa legítima em relação à ambiguidade entre notícia e entretenimento, que abre um caminho perigoso para que ficções mais perigosas inundem a consciência pública - com consequências muito mais sérias. 

Talvez possamos falar mais sobre nossos reais desafios sociais, e como podemos ser melhores.

Por Renee Zellweger
Atriz, escritora e produtora
Publicado: 08/08/2016 16:21 BRT Atualizado: 08/08/2016 16:34 BRT

Fonte: http://www.brasilpost.com.br/renee-zellweger/podemos-ser-melhores_b_11392378.html

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